Comparar a Santa Felicidade de antigamente com a dos dias de hoje pode ser considerada uma tarefa fácil. O bairro urbanizado do nosso tempo, movimentado e repleto de restaurantes, pouco faz lembrar das casas coloniais e do movimento de carroças do século passado.
Na época, a colônia era profundamente ligada à agricultura de autoabastecimento e comércio com Curitiba. Dos produtos mais importantes cultivados na época se destacavam o milho, a batata, o feijão, a cevada, o trigo, hortaliças e a uva. Esta última, de profunda ligação com as tradições trazidas da Itália pelos imigrantes.
Pouco tempo depois da fundação do bairro, os primeiros parreirais já estavam plantados. Cada família produzia a sua uva, o seu vinho. A produção era grande, tanto que, anos mais tarde, a comunidade organizou uma festa para vender tamanha quantidade: a Festa da Uva.
Hoje, o evento é o maior da região, levando, anualmente, mais de 20 mil pessoas para o Bosque São Cristóvão nos três dias de duração.
Porém, a fruta que dá nome à Festa não se faz mais tão presente no bairro, como no século passado. Os parreirais de outrora foram dando lugar a um bairro residencial.
Mas, mesmo com todo o crescimento da região, ainda é possível encontrar parreirais por Santa Felicidade.
Um desses lugares é a propriedade da família Basso, que mantém viva a tradição do plantio e cultivo da uva para a fabricação de vinho, com uma produção que chega a 1,1 mil litros de vinho por ano, produzidos com cerca de 1,7 mil quilos de uva, colhidas no próprio terreno.
Ali existem pés com mais de 60 anos de história, plantadas pelo “nonno” Jacob Basso, avô de José Carlos Basso, conhecido como “Beppe Basso”.
“O início foi com o meu avô, Jacob Basso. Eu lembro que eu era pequeno e ajudei ele, colocando as mudas das videiras nos buracos que ele fazia na terra. Ele tinha um parreiral pequeno e veio ampliando. Esse aqui existe há mais de 60 anos, e ainda hoje existem quatro pés que plantei com ele, naquele tempo”.
Algumas décadas atrás, uma praga assolou os parreirais da região de Santa Felicidade, fazendo com que a maioria deles fosse extinta. “A praga conseguiu matar uma parte do nosso parreiral, mas conseguimos recuperar um pedaço. E, assim, estamos mantendo ele até hoje, conseguindo fazer vinho e ter uva caseira”.
As dificuldades no cultivo da uva são grandes, sobretudo por questões climáticas. “A dificuldade hoje para manter um parreiral é que você depende do clima. De repente, dá uma chuva de pedra e em poucos minutos acaba com o parreiral. Se o clima cooperar, dá uma safra boa”.
Mesmo com as adversidades, a família Basso, com muito suor e carinho, segue mantendo viva a tradição que passa de geração em geração. “Estamos tentando manter até o final a tradição dos nossos nonos, de ter a uva e fazer vinho caseiro, para poder deliciar com uma polenta e frango”.
Beppe conta, ainda, que o processo de fabricação do vinho segue o mesmo ritual do tempo dos avós. “A colheita da uva é feita, geralmente, no início de fevereiro. Em seguida, iniciamos a moagem da fruta, separamos o bagaço, colocamos o açúcar e envasamos nos tonéis para acontecer a fermentação. Essa é a receita que seguimos desde sempre. A única diferença é que hoje usamos tonéis de plástico ao invés da madeira”.
Após o período de fermentação, o vinho então é redistribuído para as garrafas e garrafões. A produção é, sobretudo, para consumo da família e amigos. “É uma tradição familiar e gostamos de mantê-la. Apesar do trabalho, é muito gratificante o tempo que passo cuidando das parreiras”, conta.
PRODUÇÃO FAMILIAR
Outra família que se destaca na fabricação do vinho é a Caliari. A tradição, que também veio dos bisavós italianos, era mantida para consumo da própria família. Segundo Paulo Cesar Caliari, a comercialização começou a aumentar na década de 90. “Os amigos vinham nos visitar, e ao beberem nosso vinho, pediam para comprar”, conta.
Nos dias de hoje, para fabricar cerca de 10 mil litros de vinho e 4 mil litros de suco, é necessário comprar uva de outras regiões. “No começo, o cultivo era feito também por nossos bisavós, nas propriedades em que eles viviam. Nós também produzíamos uva onde hoje está localizada a Adega Caliari. No entanto, alastrou-se uma praga, a “pérola”, que dizimou nossos parreirais. A partir desse momento, tivemos que começar a comprar uva de fora”, explica Caliari.
A produção do suco, do vinho e da geleia proporciona também momentos de convívio familiar. Todos ajudam, do processo de moagem e processamento à comercialização dos produtos.
A Adega Caliari participa também das Festas da Uva e do Frango, Polenta e Vinho, no Bosque São Cristóvão. “São eventos muito importantes, porque podemos mostrar a recompensa do nosso esforço e trabalho, divulgando e comercializando não somente os produtos que fabricamos, mas também nossos ideais de convivência de comunidade e família, preservando, assim, as tradições culturais de nossos antepassados”, completa Caliari.